Revista Nordeste: Entrevista com Valdênia Apolinário
Por LUCIANA LEÃO
Nunca antes as ideias do considerado um dos maiores economistas do Brasil, Celso Furtado, estiveram tão próximas de uma implantação prática como com o advento do Complexo Econômico-Industrial da Saúde (CEIS). Furtado, um defensor ferrenho do desenvolvimento econômico regional e da industrialização, visualizou, em décadas passadas, um Brasil com menos desigualdades e mais oportunidades para todas as suas regiões. Suas teorias sobre a necessidade de políticas públicas robustas e de um Estado ativo na promoção do desenvolvimento estão intrinsecamente alinhadas com os objetivos do CEIS.
O CEIS surge como uma estratégia abrangente e inovadora que busca não apenas fortalecer o Sistema Único de Saúde (SUS), mas também fomentar o desenvolvimento econômico e social, especialmente no Nordeste brasileiro. Ao integrar a produção industrial de insumos de saúde com avanços tecnológicos e iniciativas de sustentabilidade, o CEIS reflete a visão de Furtado de um desenvolvimento que é ao mesmo tempo inclusivo, diversificado e sustentável.
Neste contexto, o CEIS não é apenas um projeto de saúde pública, mas uma verdadeira revolução econômica e social, alinhada com as ideias de Celso Furtado, visando reduzir desigualdades, promover a industrialização regional e estabelecer um novo patamar de bem-estar para a população brasileira.
CEIS: UM MOBILIZADOR DE FORÇAS
A revista NORDESTE traz uma série de debates com diferentes especialistas sobre a importância e complexidade que envolve a aplicabilidade urgente do CEIS.
Conversamos com Valdênia Apolinário, economista, professora Titular da Universidade Federal do Rio Grande do Norte/UFRN – Departamento de Economia e Programa de Pós-Graduação em Economia. É pesquisadora associada de Rede de Pesquisa em Sistemas Produtivos e Inovativos Locais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (REDESIST-IE-UFRJ). É membro do Grupo de Estudos e Pesquisas em Espaço, Trabalho, Inovação e Sustentabilidade (GEPETIS/DEPEC/UFRN/CNPq).
REVISTA NORDESTE: O que é o Complexo Econômico-Industrial da Saúde (CEIS) e qual é sua importância para o desenvolvimento sustentável do Brasil?
VALDÊNIA APOLINÁRIO: O Complexo Econômico-Industrial da Saúde (CEIS) é um tema mobilizador de forças, um tema potente e necessário ao Brasil do presente e do futuro! Os serviços de saúde, a produção e a inovação voltada à saúde são altamente estratégicos, pois reúnem as dimensões fundamentais do desenvolvimento sustentável: os fatores sociais, econômicos, ambientais e de soberania nacional. Ademais, a saúde compõe a Agenda 2030 (ODS 3: Saúde e Bem-Estar), além de ser uma conquista civilizatória, reduzir desigualdades, permitir maior equidade, qualidade de vida e atingir a vida de milhões, ampliar oportunidades produtivas e inovativas através de novos materiais, novos produtos e processos, novas tecnologias, novas formas de consumo e de vida. Por tudo isso é possível concluir que saúde é desenvolvimento!
REVISTA NORDESTE: Quais seriam as maiores referências para o CEIS?
VALDÊNIA APOLINÁRIO: A principal referência quanto ao Complexo Econômico-Industrial da Saúde (CEIS) é o atual Secretário de Ciência, Tecnologia, Inovação e Insumos Estratégicos em Saúde, do Ministério da Saúde, o economista Carlos Augusto Grabois Gadelha. A noção de CEIS incorpora contribuições advindas de ricos aportes teóricos e debates como Sistema de inovação, Economia Política, Desenvolvimento nacional, Desenvolvimento regional, entre outros. Portanto, de Joseph Schumpeter a Celso Furtado, passando por Karl Marx, Oswaldo Cruz, Aníbal Pinto, Sérgio Arouca, o ex-ministro José Gomes Temporão e tantos outros(as).
REVISTA NORDESTE: Como explicar a conexão dos sistemas e serviços de saúde e o que está por trás de sua dinâmica complexa e industrial?
VALDÊNIA APOLINÁRIO: O CEIS realça a dimensão sistêmica que existe entre os Serviços de Saúde (Hospitais, Ambulatórios, Serviços de Diagnóstico, Atenção Básica, Varejo Distribuição) e o Subsistema Industrial (Indústria de base química e Indústria Mecânica: medicamentos, insumos farmacêuticos ativos/IFAs, vacinas, hemoderivados e reagentes e a Indústria de base Eletrônica e de Materiais).
REVISTA NORDESTE: Como explicar a conexão dos sistemas e serviços de saúde e o que está por trás de sua dinâmica complexa e industrial?
VALDÊNIA APOLINÁRIO: O CEIS realça a dimensão sistêmica que existe entre os Serviços de Saúde (Hospitais, Ambulatórios, Serviços de Diagnóstico, Atenção Básica, Varejo Distribuição) e o Subsistema Industrial (Indústria de base química e Indústria Mecânica: medicamentos, insumos farmacêuticos ativos/IFAs, vacinas, hemoderivados e reagentes e a Indústria de base Eletrônica e de Materiais: eletrônicos, próteses e órteses, materiais de consumo e diagnóstico). Também inclui o Subsistema de Informação e Conectividade (da Rede web às tecnologias disruptivas como big data, inteligência artificial, internet das coisas, nanotecnologia, edição genética, biotecnologia, manufatura aditiva) e o Subsistema Político, Regulatório e de Promoção de Políticas, escala indispensável de atuação do Estado (GADELHA, 2021). Por tudo isso, o CEIS é também o espaço privilegiado onde atores públicos e privados, diferentes atividades, empresas, sociedade civil, movimentos sociais, coletivos produtivos podem atuar, porque todos podem ser implicados na identificação dos desafios, soluções e potencialidades oferecidas pelo tema, pois desafios são também oportunidades!!!
O ADVENTO DAS CRISES
REVISTA NORDESTE: Quais são as principais crises que destacaram a necessidade de uma base produtiva e inovativa no CEIS?
VALDÊNIA APOLINÁRIO: A COVID-19 e as guerras recentes, ao romperem cadeias de produção, comercialização e distribuição globais, realçaram ainda mais a urgência de uma base produtiva voltada à vida e territorializada, como elemento vital de soberania das nações e redução de vulnerabilidades, em meio às múltiplas crises que caracterizam o nosso tempo. Também reforçaram a importância da construção de uma soberania produtiva em tudo o que for possível na área da Saúde, desde Equipamentos de Proteção Individual (EPIs), medicamentos, equipamentos, seringas, ventiladores pulmonares, passando por fitoterápicos, hemoderivados, ciência de ponta, etc.
CEIS E A SUSTENTABILIDADE DO SUS
REVISTA NORDESTE: Como o CEIS contribui para a sustentabilidade do Sistema Único de Saúde (SUS)?
VALDÊNIA APOLINÁRIO: O SUS é um patrimônio nacional, é o maior sistema público de saúde do mundo, em termos populacionais, e evitou uma tragédia que poderia ter sido muito maior durante a pandemia da COVID. Porém, há expressivo e crescente déficit na balança comercial de saúde, resultante de um descompasso entre a ampliação do acesso universal à saúde e o sistema de produção e tecnologia em saúde existente no Brasil. E isto confronta o próprio direito à saúde previsto na Constituição Federal. Assim, não é possível que o SUS exista sem uma produção industrial que lhe proporcione efetiva sustentação. Logo, é urgente a soma de esforços visando a consolidação de uma base produtiva e inovativa em saúde pujante, territorializada e presente nas 5 macrorregiões brasileiras.
UMA JANELA DE OPORTUNIDADES PARA O NORDESTE
REVISTA NORDESTE: Quais são os benefícios econômicos esperados para o Nordeste a partir do desenvolvimento do CEIS?
VALDÊNIA APOLINÁRIO: Trata-se de uma janela de oportunidade que o Nordeste não pode perder. O estímulo ao CEIS na região pode contribuir para uma grande transformação socioeconômica, ambiental e tecnológica no Nordeste. O CEIS é um forte gerador de emprego e renda, os empregos na área da saúde/CEIS são formais e possuem uma remuneração e nível de qualificação acima da média nacional. Tais atividades também têm baixo impacto sobre o meio ambiente, quando comparados com outras. Há ainda uma miríade de possibilidades produtivas e inovativas que podem ser mobilizadas a partir da saúde/CEIS, no Nordeste. Isto ocorre porque o BRASIL é o maior comprador individual de medicamentos de alta complexidade e o faz de forma centralizada por meio do SUS. Significa que o sistema pode se auto sustentar através do mercado doméstico, potencializando a geração de emprego formal, renda (salário), arrecadação tributária, CT & I, etc. Então, tanto a prestação dos serviços, como a indústria que dá suporte material à saúde poderá ser positivamente impactada com o aumento da demanda por medicamentos, equipamentos, materiais de consumo etc.
A CONEXÃO COM A CADEIA PRODUTIVA DA INDÚSTRIA
Os estabelecimentos de saúde também necessitam de mobiliário, roupas/enxoval hospitalar, hotelaria hospitalar (cozinha, restaurante, nutrição, serviços de quarto, limpeza, segurança, lavanderia, decoração), segmentos como arquitetura e engenharia hospitalar, profissionais da área de engenharia clínica, engenharia biomédica, gestão e manutenção de equipamentos médicos, etc., ou seja, uma miríade de atividades e profissionais, e respectivas instituições de formação, também podem ser estimuladas, para além dos profissionais especificamente da saúde pública e privada, nos diferentes níveis de complexidade: Médicos, enfermeiros e demais profissionais de atendimento em saúde, equipes que foram a linha de frente no enfrentamento à COVID-19. E lembremos, o Nordeste possui tais sistemas produtivos (Arranjos Produtivos Locais (APLs) de Movelaria, Confecções/Têxtil, Alimentação, Calçados), produtos de menor conteúdo tecnológico sim, mas presentes em qualquer unidade de saúde e em muitos sistemas produtivos locais (APLs) situados na região Nordeste. A pergunta é: qual é a origem das compras em prol dos estabelecimentos de saúde presentes nos 1.794 municípios nordestinos? Resposta: poderia ser primordialmente o Nordeste!
ARCABOUÇO FINANCEIRO PARA O CEIS
REVISTA NORDESTE: De onde virão os recursos financeiros para a implementação do CEIS e quais são as fontes de investimento previstas?
VALDÊNIA APOLINÁRIO: Em setembro de 2023, o governo brasileiro lançou “a Estratégia Nacional para o Desenvolvimento do Complexo Econômico-Industrial da Saúde” visando, entre outros propósitos, contribuir para a redução da dependência nacional na área de saúde, a reindustrialização do Brasil, a promoção do desenvolvimento regional e territorial, a inclusão produtiva, a redução das desigualdades e promoção da sustentabilidade. Trata-se de uma política de Estado que envolve variados atores e dimensões, a partir de seis programas estruturantes: i) Programa de Parceria para o Desenvolvimento Produtivo; ii) Programa de Desenvolvimento e Inovação Local; iii) Programa para Preparação em Vacinas, Soros e Hemoderivados; iv) Programa para Populações e Doenças Negligenciadas; v) Programa de Modernização e Inovação na Assistência; e, vi) Programa para Ampliação e Modernização da Infraestrutura do CEIS.
NEOINDUSTRIALIZAÇÃO E NOVO PAC
Em janeiro de 2024, o governo federal também lançou o programa Nova Indústria Brasil (NIB), contemplando seis grandes missões da nova política de desenvolvimento industrial, também chamada neoindustrialização, na qual a saúde/CEIS é a segunda dentre as seis missões elencadas como prioritárias na nova política industrial. Além disso, o Novo PAC, que destina a maior parte dos recursos para energia, transporte e sustentabilidade (89%), temas que também dialogam com a saúde em sua multidimensionalidade, também contém investimentos para a saúde (R$ 30,5 bilhões), enfatizando a ampliação do acesso, expansão dos serviços da atenção básica e especializada, construção de novas unidades, ou seja, investimentos através de políticas e programas vitais para a vida de milhões de brasileiros(as), como ampliação dos Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU), os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), os Centros Especializados em Reabilitação (CER), Maternidades, Policlínicas, Unidades Básicas de Saúde (UBs), Unidades de Pronto Atendimento (UPAs).
CONECTIVIDADE ENTRE SISTEMAS PÚBLICOS, PRIVADOS E FILANTRÓPICOS
Ademais, o CEIS já está na região através dos estabelecimentos de saúde públicos, privados e filantrópicos existentes na região, uma vez que o próprio SUS prevê uma rede pública e gratuita de atendimento e outra privada. Esta última atua de forma complementar e conforme as diretrizes do SUS. Neste sentido, destaco ainda a rede de laboratórios oficiais também presente no Nordeste, a qual tem por missão a produção de medicamentos para apoiar as estratégias do Ministério e das Secretarias de Saúde, além de serem indutores da pesquisa e inovação tecnológica e do desenvolvimento endógeno na área farmacêutica para o SUS. São estes: o Núcleo de Pesquisa em Alimentos e Medicamentos – NUPLAM/UFRN; Laboratório Industrial Farmacêutico do Estado da Paraíba (Lifesa/PB); Instituto de Pesquisa em Fármacos e Medicamentos (IPeFarM/UFPB), Laboratório Farmacêutico do Estado de Pernambuco (Lafepe/PE); Empresa Brasileira de Hemoderivados e Biotecnologia (Hemobrás/PE), Fundação Baiana de Pesquisa Científica e Desenvolvimento Tecnológico, Fornecimento e Distribuição de Medicamentos (Bahiafarma/BA); Laboratório de Avaliação e Desenvolvimento de Biomateriais do Nordeste (CERTBIO/UFPB). No Nordeste também estão instaladas grandes indústrias farmacêuticas brasileiras, a exemplo de Pernambuco, como a Aché, Eurofarma, EMS, Hebron, Novartis, Blau Farmacêutica, Lapon, entre outras. Outras farmacêuticas importantes estão no estado da Bahia, Ceará, Sergipe, entre outros. Evidentemente que este parque industrial ainda é pequeno se comparado ao presente no Sudeste. Há ainda iniciativas dignas de nota, também a partir de empresas privadas, como o Grupo Centroflora, que é formado pela Phytobios, Centroflora Inova e Instituto Floravida. A Centroflora possui uma planta em Parnaíba/PI que produz a pilocarpina, IFA extraído da folha do jaborandi e utilizado na produção de colírios para tratamento do glaucoma em todo o mundo. Essa iniciativa também integra comunidades extrativistas, universidades e empresas. Portanto, é bastante inovadora!
REVISTA NORDESTE: Como a Nova Indústria Brasil (NIB) se insere nesse contexto e como suas missões estão relacionadas ao CEIS?
VALDÊNIA APOLINÁRIO: Primeiramente gostaria de assinalar que a retomada da política industrial no Brasil, na contramão da ortodoxia econômica, acompanha as políticas exigidas pela pandemia por COVID-19, além das transformações geopolíticas e econômicas recentes. Logo, países desenvolvidos e em desenvolvimento estão adotando uma nova geração de política industrial. E em todos os casos, seja nos EUA, União Europeia, China, é reforçada a importância do papel do Estado na política industrial, além de uma macroeconomia favorável ao desenvolvimento das nações e ao investimento. Isto é ainda mais importante para o Brasil, que segue registrando uma das maiores taxas de juros do mundo (10,5% a.a), quando a inflação recém-divulgada é de 4,23% no acumulado de 12 meses. Como já assinalado, o programa Nova Indústria Brasil (NIB) contempla 6 (seis) grandes missões, onde as questões mais prementes da sociedade brasileira no século XXI são priorizadas. A saúde/CEIS é a segunda dentre as seis missões elencadas como prioritárias na nova política industrial. São estas: i) Cadeias agroindustriais sustentáveis e digitais para a segurança alimentar, nutricional e energética; ii) Complexo econômico industrial de saúde resiliente, para reduzir as vulnerabilidades do SUS e ampliar o acesso à saúde; iii) Infraestrutura, saneamento, moradia e mobilidade sustentáveis para a integração produtiva e o bem-estar nas cidades; iv) Transformação digital da indústria para ampliar a produtividade; v) Bioeconomia, descarbonização e transição e segurança energéticas para garantir os recursos para as gerações futuras; e vi) Tecnologias de interesse para a soberania e defesa nacionais. E todas estas missões se relacionam com saúde/CEIS, porque a própria definição de SAÚDE da Organização Mundial da Saúde (OMS), em 1947, ressalta a multidimensionalidade do tema, onde a saúde é tida como “um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de doença”. Ademais, as seis missões apresentam oportunidades produtivas e inovativas para o Nordeste e estão ligadas à saúde/CEIS, uma vez que envolvem aspectos políticos, econômicos, sociais, ambientais e tecnológicos.
NUTRIÇÃO ESTÍMULO À AGROECOLOGIA E À DESCARBONIZAÇÃO
Portanto, a segurança alimentar e nutricional (Missão 1) pode advir de estímulos à produção saudável a partir da agroecologia e da agricultura familiar, dos ciclos curtos, inclusive porque muitos produtos alimentícios foram incluídos na Cesta Básica Nacional e terão isenção de impostos na recém-regulamentada reforma Tributária, tais como carnes, peixes, hortaliças, frutas, feijões, etc. A redução das vulnerabilidades do SUS/CEIS (Missão 2) pode ocorrer através do desenvolvimento de biofármacos e bioprodutos a partir do bioma Caatinga, assim como o desenvolvimento de equipamentos, instrumentos e materiais de consumo.
O bem-estar nas cidades (Missão 3) pode envolver o reaproveitamento de Resíduos Sólidos Urbanos (RSU), pois resíduos de alumínio, ferro e papel são úteis à indústria de transformação. A transformação digital (Missão 4) também traz oportunidades para o Nordeste, pois há um expressivo eixo de TICs entre Recife-João Pessoa-Campina Grande/PB, e certamente em outros estados. A descarbonização (Missão 5) pode reaproveitar os resíduos orgânicos, que são 50% dos RSU no Brasil, podendo gerar não apenas fertilizantes, mas também energia, através do biometano, biogás.
A soberania (Missão 6) pode advir da maior autonomia do Nordeste e demais macrorregiões em relação aos medicamentos e equipamentos importados. Estes são apenas alguns exemplos que apontam para uma nova economia voltada à vida e ao bem-estar. E o Nordeste é parte deste grande encontro do presente com o futuro. Portanto, o Nordeste é solução!
Ademais o Nordeste possui 1.794 (32%) dos 5.565 municípios brasileiros e o SUS está presente em toda a região. No caso do Nordeste, 800 municípios (45%) não possuem serviços médicos privados e dependem exclusivamente do SUS. A média nacional é 34% (APSREDES, 2023).
Este desafio é também uma imensa oportunidade de reorientação, por exemplo, da compra pública, pois esta não pode ser baseada apenas no menor preço, podendo estar ligada a uma estratégia maior de desenvolvimento e soberania nacional, que estimule a produção em saúde também nas 5 macrorregiões brasileiras. E que conecte a infraestrutura de conhecimento igualmente presente em todos os estados, suas universidades e institutos federais, institutos de pesquisa, faculdades particulares, o sistema ‘S’, Federação de Indústria, Sebrae, entre outros.
BIODIVERSIDADE E A ROTA DO DESENVOLVIMENTO
REVISTA NORDESTE: Quais são os projetos específicos que visam utilizar a biodiversidade local para o desenvolvimento de bioinsumos e bioativos?
VALDÊNIA APOLINÁRIO: Existem vários esforços que visam utilizar a biodiversidade local em prol da saúde humana. Parte destas iniciativas dialogam com políticas iniciadas no primeiro governo Lula, como o ‘Programa de Rotas de Integração Nacional’, priorizadas pela Política Nacional de Desenvolvimento Regional (PNDR), que já considerava as múltiplas escalas de atores e ações e visava integrar Arranjos Produtivos Locais (APLs) estratégicos como Açaí, Fruticultura etc. Em 2024, destaco a ‘Missão Rota’ como altamente estratégica, pois visa estimular o desenvolvimento econômico, social e sustentável das regiões a partir da estruturação da cadeia produtiva de fitomedicamentos, fitoterápicos, fitocosméticos e alimentos nutracêuticos.
Ressalto precisamente a ‘Rota da Biodiversidade’ como uma importante oportunidade de inovação e desenvolvimento tecnológico no setor farmacêutico. Trata-se de um projeto do Ministério do Desenvolvimento Regional (MDR), em parceria com a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Conforme informações do MDR, atualmente há 5 polos instalados e envolvendo vários municípios dos estados de Pernambuco, Bahia, Espírito Santo, Amazonas e Paraíba.
Destaco ainda iniciativas que também são desdobramentos da Política Nacional de Plantas Medicinais e Fitoterápicos, criada em 2006, que já visava o uso sustentável da biodiversidade para o desenvolvimento da cadeia produtiva e da indústria nacional. Também ressalto que nas instituições de ensino e pesquisa localizadas no Nordeste, especialmente nas universidades públicas, há uma miríade de projetos, pesquisas e cursos que visam utilizar a biodiversidade local em prol da saúde humana e da sustentabilidade do planeta, os bioativos encontrados de forma natural (em vegetais e produtos de origem animal), ou sintética. Algumas destas ações ocorrem em parceria com a Fiocruz, ministérios, empresas, municípios, comunidades ou até outras nações.
E este imenso potencial deve ser mapeado, apoiado e ampliado, de maneira a subsidiar políticas públicas e privadas em prol da saúde/CEIS na região. A criação do Fundo Caatinga, uma proposição do Consórcio Nordeste em fins de 2023, que objetiva a busca de financiamento para o combate ao desmatamento, conservação do bioma e suporte às comunidades atividades locais, também poderá impulsionar projetos, pesquisas e iniciativas com base nas potencialidades deste bioma para a saúde/CEIS. O que certamente irá revelar o imenso potencial farmacêutico e nutricional da biodiversidade nordestina.
PESQUISA, INOVAÇÃO, CIÊNCIA
REVISTA NORDESTE: Qual é o papel das parcerias estratégicas e redes de inovação na implementação do CEIS no Nordeste?
VALDÊNIA APOLINÁRIO: São indispensáveis! Os atores econômicos (produtores, comercializadores, distribuidores, fornecedores), além dos atores institucionais (governos, ministérios, bancos de desenvolvimento, instituições de ensino e pesquisa, agências de apoio, entidades de representação, sociedade civil) podem trabalhar juntos em prol do desenvolvimento da saúde/CEIS no Nordeste. A indústria da saúde é altamente concentrada mundialmente. No Brasil, geralmente se localiza entre Minas Gerais e Rio Grande do Sul, com grande destaque para São Paulo. Creio que as oportunidades para o Nordeste resultam da construção de agendas comuns, de união de forças entre as instituições que historicamente contribuíram para o desenvolvimento da região, como SUDENE, BNB, BNDES, passando pelas novas e inovadoras institucionalidades como o Consórcio Nordeste, a Rede ICTs Nordeste.
O Sistema Único de Saúde (SUS), além de ampliar a cidadania, gera uma imensa demanda por medicamentos e equipamentos que pode ser territorializada e estar presente em todo o país, gerando emprego, renda e inovação no território nacional. A defesa desta agenda e do SUS é de todos os brasileiros!!
Além disso, alguns países têm se destacado na implementação de políticas voltadas à saúde/CEIS, como China e Índia, além dos que historicamente dominam as patentes da área no mundo. É importante acompanhar tais experiências e extrair lições, estabelecer parcerias estratégicas, redes de cooperação e inovação, etc.
NORDESTE: Fica evidente que o fortalecimento da infraestrutura de ensino e pesquisa, assim como a qualificação, educação são cruciais para o desenvolvimento do CEIS…
VALDÊNIA APOLINÁRIO: Todas as nações que atualmente concentram e se destacam na produção e inovação em saúde investiram e investem fortemente em educação. Assim, a infraestrutura de ensino e pesquisa cumpre, no mundo inteiro, o papel indispensável na geração de CT & I, na qualificação dos profissionais, no processo inovativo, no desenvolvimento de produtos e processos, no atendimento às necessidades das populações e territórios em que atua e no aprendizado a partir destas interações. Isto é ainda mais visível na área de saúde.
As atividades relacionadas à saúde/CEIS geralmente são complexas, demandam pessoal altamente qualificado, e necessitam de esforços continuados visando acompanhar o debate nacional e internacional, as novas técnicas, os novos materiais, os novos usos e tendências e sua correlação com as práticas e saberes já usuais e os saberes tradicionais. Um grande exemplo é o papel irradiador de aprendizados e inovações que ocorrem a partir dos hospitais universitários.
Logo, não é possível estimular a saúde/CEIS sem a garantia dos mínimos constitucionais para a saúde e educação; sem estimular a CT&I; sem valorizar as ICTs existentes no país e em cada região, seus docentes, discentes e apoio técnico; sem ampliar, melhorar e atualizar a sua infraestrutura; sem apoiar efetivamente a graduação e a pós-graduação; sem orientar suas ações para o desenvolvimento nacional e regional.
NORDESTE: Há uma correlação transversal do CEIS que vai além do fortalecimento do SUS. Estaria correta essa afirmação?
VALDÊNIA APOLINÁRIO: O CEIS inclui a prestação de serviços em saúde e a indústria que oferece a base material para o funcionamento dos serviços de saúde. Então, sem dúvida, um objetivo transversal ao CEIS, visto desde uma perspectiva coletiva e da sustentabilidade sistêmica, é a melhoria do bem-estar e da qualidade de vida de milhões de pessoas e do planeta, pois cuidar da saúde também é cuidar do planeta.
Além deste, que considero ser o mais importante, pois significa que inúmeras políticas, inclusive a econômica, deveriam se orientar para a vida, acredito que a necessidade de apoio à saúde/CEIS visa gerar emprego, renda e inovação em território nacional, estimulando inúmeros sistemas produtivos e inovativos presentes neste complexo.
TRANSIÇÃO ENERGÉTICA E O CEIS
NORDESTE: Como o uso de biomassa, biogás e biometano se integra às estratégias de desenvolvimento sustentável do CEIS?
VALDÊNIA APOLINÁRIO: Conforme assinalado anteriormente, a definição de saúde da OMS, em 1947, é que a saúde é “um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de doença”. Partindo dessa desafiante e promissora noção e trazendo para os dias atuais, podemos afirmar, por exemplo, que vários Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) mantêm relação direta com a saúde/CEIS, para além do ODS 3 – Saúde e Bem-estar, como os ODS 2 (Fome zero e agricultura sustentável), 6 (Água potável e saneamento), 7 (Energia limpa e acessível), 11 (Cidades e comunidades sustentáveis), 12 (Produção e consumo responsáveis), 13 (Ação contra a mudança climática).
Os Resíduos Sólidos Urbanos (RSU), vulgarmente chamados de lixo, compõem o saneamento básico (abastecimento de água; coleta e tratamento de esgotos; limpeza urbana, coleta e destinação do lixo; e drenagem e manejo da água das chuvas). Os RSU são aqueles originários de atividades domésticas em residências urbanas (resíduos domiciliares) e os originários da varrição, limpeza de logradouros e vias públicas e outros serviços de limpeza urbana (resíduos de limpeza urbana). Como já afirmado, 50% dos Resíduos Sólidos Urbanos (RSU) no Brasil são orgânicos e quase 100% são destinados aos lixões, que lamentavelmente ainda preponderam no nosso país, especialmente no Nordeste, a despeito da Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS) de 2010.
Dados do Ministério do Meio Ambiente (SINIR) revelam um baixo desempenho dos estados do Nordeste quanto ao tratamento e destinação final de RSU, pois ainda são raras as modalidades mais sustentáveis de tratamento e disposição de RSU: ‘Usina de Triagem’ – que separa os materiais recicláveis dos rejeitos (que irão para o aterro) e ‘Usina de Compostagem’ – que produz adubo orgânico que pode servir para hortas urbanas e escolares, praças, agricultura familiar, entre outros. Este gargalo no Nordeste é ainda mais verdadeiro quando comparado ao Sudeste e Sul, que exibe várias iniciativas, seja em número de municípios abrangidos por tratamento, seja na disposição final de RSU ou tipologias mais sustentáveis.
Um exemplo é a empresa Termoverde Caieiras/SP, uma termelétrica movida a biogás, uma das maiores do mundo, e que gera energia a partir dos resíduos depositados no aterro sanitário. Há uma unidade em Salvador/BA. O mapeamento e acompanhamento das experiências existentes dentro e fora da região, assim como em outros países, pode oferecer luz sobre o tema, pois como também já assinalado, desafios
são oportunidades!
BIOPRODUTOS E A REDE IMPACTA CAATINGA
NORDESTE: Como a Rede Impacta Caatinga pode contribuir para intermediar e dar celeridade ao desenvolvimento e capilaridade do CEIS no Nordeste?
VALDÊNIA APOLINÁRIO: A Rede Impacta Caatinga é um projeto coordenado pela SUDENE onde atores como instituições governamentais, cooperativas, empresas públicas e privadas atuam conjuntamente, visando utilizar plantas do bioma Caatinga na geração de bioprodutos voltados para a área de saúde. A expectativa da superintendência é que todos os estados nordestinos sejam contemplados. Atualmente as parcerias mais expressivas ocorrem entre a Sudene e as Universidades Federal de Pernambuco (UFPE) e Federal do Vale do São Francisco (Univasf).
A Rede Impacta Caatinga é importante para o CEIS por ser inovadora e se constituir num exemplo do expressivo potencial nordestino para estimular e gerar sistemas e cadeias produtivas inteiramente novas e fundadas na rica biodiversidade da região, especialmente o bioma Caatinga. Há diversas faunas e floras da Caatinga: da beira do rio, serras, rochas, áreas de sequeiro, etc). E mais, o projeto também é importante para o CEIS porque atua de forma sistêmica, articulando atores de diferentes escalas de atuação, a partir da SUDENE, tais como ministérios, universidades, cooperativas, institutos de tecnologia e gestores municipais. E esse formato de valorização, diálogo e interação entre atores também é promissor e inovador.
DESAFIOS A SUPERAR
NORDESTE: Quais são os desafios históricos enfrentados pelo Nordeste que o CEIS busca superar através de suas iniciativas?
VALDÊNIA APOLINÁRIO: São muitos os desafios históricos enfrentados pelo Nordeste: o seu lugar na divisão internacional do trabalho e do conhecimento, os problemáticos indicadores sociais (elevada taxa de pobreza, baixa expectativa de vida, concentração fundiária, elevada taxa de desemprego), etc., a despeito das melhorias recentes em governos mais progressistas, etc. O estímulo ao CEIS busca primeiramente a redução da dependência do mercado internacional na oferta de bens e serviços relacionados à saúde, pois a elevada intensidade tecnológica destes produtos importados gera um enorme déficit na balança comercial da saúde.
Um outro desafio é o atendimento das necessidades de saúde presentes no Nordeste a partir do aproveitamento efetivo da CT&I gerada pelas ICTs nordestinas. Ou seja, o desafio é fazer com que a produção das ICTs seja efetivamente utilizada para a promoção do desenvolvimento sustentável e justo na região, o que pressupõe o apoio às ICTs existentes, seus profissionais, estruturas, projetos, parcerias, etc. Evitando, inclusive, que haja fuga de cérebros. Outro desafio é fazer com que a região Nordeste esteja efetivamente presente nas políticas em prol do desenvolvimento do CEIS e nas 6 missões da nova política industrial (NIB), e que estes esforços resultem na geração de bons empregos e renda na região e na redução das persistentes desigualdades regionais.
Texto Original publicado na Revista Nordeste (RNE) Ano 18, Número 210.
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