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Economia feminista

Por RENATO DAGNINO*

Mais do que um diagnóstico, a economia feminista oferece um projeto de sociedade baseado na sororidade e na solidariedade. O texto adverte, porém, que o caminho para alcançá-lo não pode ser pavimentado com a lógica neoliberal do empreendedorismo, sob pena de contaminar o fim estratégico com meios táticos antagônicos

1.

Estando em Salvador, depois de quase um ano em Campinas/Unicamp, fui “sapear” o 3º Seminário da Mulher Economista realizado nos dias 5 e 6 de setembro nas primeiro-mundistas instalações do SEBRAE.

Minha convivência com o órgão promotor do Seminário, o Conselho Federal de Economia (Cofecon), onde tenho atuado na Comissão de Responsabilidade Social e Economia Solidária, prometia uma imersão que há tempos eu buscava fazer no tema da Economia feminista.

esclareço de início que eu já entendia a economia feminista como uma rigorosa interpretação, possibilitada pela “ciência econômica” (expressão que não gosto muito, mas que uso aqui para denotar a sistematicidade e potência analítico-conceitual da sua produção), da realidade do vigente sistema econômico patriarcal e capitalista, tendo como referência os princípios e valores ideológicos e políticos e, numa palavra, feministas, que a animam.

Desde as primeiras mesas-redondas, explicitou-se uma capacidade de análise que conduz a um diagnóstico muito bem fundamentado teoricamente, e apoiado em sólida evidência empírica mundial e nacional, da retorquível condição subordinada da mulher. Submetida às transversalidades nele denunciadas, a mulher é submetida à violência cotidiana por um sistema que se reproduz, funcionalmente (no sentido de que atua para a, e se beneficia da manutenção da negação de seu papel socioeconômico e da sua opressão política) de modo machista.

Destacou-se também, com manifesta precisão, que alterar urgentemente essa condição é um importante vetor de aumento da eficiência, eficácia e efetividade da política pública e de redução da carga macroeconômica imposta pela subordinação da mulher.

Assim, apartando-se de um mundo onde a “economia mainstream” se vem mostrando incapaz de transcender o curtoprazismo “objetivo e realista”, e de atentar para a necessidade de incorporar à análise econômica as múltiplas evidências da policrise civilizatória em que vivemos, a economia feminista se impõe como um marco analítico-conceitual capaz de orientar a construção do cenário de igualdade, justiça e reponsabilidade ambiental que merecemos.

E que, ademais, diferentemente de outras propostas que também merecem destaque, como a do ecossocialismo, apresenta um potente conjunto de instrumentos metodológico-operacionais que, de modo coerente com esse marco analítico-conceitual, pode orientar com êxito a ação política.

Reforçando a exequibilidade desse cenário, seja devido a uma característica intrínseca, “natural”, de gênero, seja como fruto de um processo consciente de desconstrução de estruturas coercitivas e por isso irracionais, e de construção de outras racionais (e para usar uma palavra da moda), sustentáveis, emerge como síntese um conceito central.

Estou me referindo à sororidade, o que ac define como “a união, solidariedade, empatia e apoio mútuo entre mulheres, quebrando a rivalidade imposta pelo machismo e promovendo uma rede de afeto para construir uma sociedade mais justa”.

É através desse conceito que se vai materializando, como mostram as experiências relatadas no Seminário, o que propõe a consigna de “mulheres atuam em rede” tantas vezes nele repetida.

2.

Com sororidade, elas vão tecendo, por enredamento, na prática, ações encadeadas e sistêmicas que visam à consecução de seus valores e interesses. E o fazem negando, com uma naturalidade que assusta aqueles que nele ainda acreditam, o primado ou mito fundacional na neutralidade da ciência.

Dessa forma, por oposição, ao invés de atuar como indivíduos isolados que buscam satisfazer seus interesses – frequentemente erigidos a valores ou decorrentes de um “instinto” -, elas vão, em rede (redes protetivas, inclusive), desconstruindo o aglomerado, errático e a-sistêmico, reputado como inerente ao sistema patriarcal e capitalista que lhe serve de moldura.

Impugnam, assim, a aura subliminar da racionalidade invocada como natural e inquestionável do sistema que oprime quem a ele está submetido. Aquela que alega que indivíduos, em busca de interesses, vale a redundância, individuais, e não da consecução de projetos coletivos, poderão contribuir para o bem-estar ou, pelo menos, para não ameaçar nossa sobrevivência no planeta que habitamos.

Atuando na contracorrente da norma imposta pelo establishment sustentado por esse sistema e questionando seus princípios e fundamentos, a sororidade vai contrapondo, no plano filosófico-moral, a solidariedade à competição.

No ambiente que precede a tomada de decisão, a persistente busca dialógica do consenso, à imposição da vontade que proporciona o poder.

No círculo que enlaça a politics com a policy, a sororidade afirma o respeito por oposição ao controle e à imposição que obscurecem conflitos encobertos e latentes, borram a interface entre hegemonia e consentimento, e mascaram processos de não-tomada de decisão.

No campo organizacional e produtivo, da rede por oposição ao indivíduo, a sororidade opõe a autogestão como princípio humanista, inerentemente humano mas inspirado no que ainda chamamos natureza, à heterogestão.

No âmbito projetual, ela reafirma, instintivamente mas também como derivação do convencimento/autoconvencimento, um élan que contrasta e se opõe ao projeto que orientou e mantém daquele sistema.

Na esfera mais propriamente econômica, ela coloca o coletivo em substituição ao privado e nela opõe a propriedade coletiva à propriedade privada e estatal dos meios de produção.

3.

O conjunto de valores e princípios do feminismo e da sororidade conduz, no primeiro momento – descritivo – de análise, à verificação da desigualdade econômica de que a mulher é objeto. No momento explicativo, à constatação de que essa desigualdade reproduz os obstáculos que impedem o rompimento do círculo vicioso das violências a que é submetida.

E, no último momento de análise – o normativo ou prescritivo – conduz à busca do que no Seminário se denominou autonomia financeira da mulher. Ao imperativo de que a obtenção dessa condição econômica no âmbito da relação que o sistema (patriarcal e capitalista) impõe no seu entorno é uma ação imediata.

É aí, no âmbito da correta causalidade assumida entre a obtenção da autonomia econômica e a interrupção do círculo vicioso da opressão e da violência, que surge uma espécie de silogismo. Uma noção que afirma, de modo no meu entender limitado, que ela necessariamente depende do ato de “empreender”. Uma noção que, apoiando-se nesse aparente truísmo (que se transformou num clichê), foi originando o que passou a ganhar o estatuto de corpo analítico-conceitual dotado de capacidade explicativa e elevada potência normativa, o empreendedorismo.

Contrastando em termos de sofisticação analítico-conceitual com a economia feminista aparece nesse ponto do percurso argumentativo, para encaminhar essa urgente e imprescindível obtenção da autonomia econômica, o empreendedorismo.

Embora aludido desde o início do Seminário, ele passou a ser mencionado com crescente recorrência a partir da apresentação de um slide, que depois de anunciar a existência no Brasil de “32 milhões de mulheres empreendedoras”, postulava que “empreendedorismo = empoderamento econômico = liberdade”.

Isso sem que se explicasse com o rigor histórico devido o processo global que, depois das três décadas gloriosas do pós-guerra, leva a que o neoliberalismo, destruindo as bases em que se assentava do capitalismo de bem-estar, passe a conferir vigência ao empreendedorismo.

Processo que, em função de uma enorme concentração de renda, oligopolização, financeirização etc., ao diminuir drasticamente a possibilidade de que os filhos da classe proprietária e da classe média pudessem se tornar empresários ou ocupar os postos de trabalho que até então a empresa gerava e que, com o enxugamento do Estado, reduzia os bons empregos e salários públicos, os compeliu a se tornarem empreendedores.

Os filhos da classe média tiveram que abandonar seu ambicionado projeto de explorar os integrantes da classe trabalhadora e foram levados a desistir de tentar vender sua própria força de trabalho a empresas que cada vez mais dela prescindem. Foram forçados a tentar rentabilizar de modo distinto o “capital social” e o “capital intelectual” que seus privilégios permitiam que acumulassem. Embora condenados a não gozar de uma posição sócio econômica semelhante à de seus pais, mecanismos ancestrais de favorecimento permitiram que mantivessem uma vida relativamente cômoda.

Socialmente legitimado, o empreendedorismo passou a ser cultivado e a abarcar os filhos da classe trabalhadora. Mais do que isso, esse mesmo processo que alterava o modo de reprodução do capital limitando sua possibilidade de serem empregados, os forçou a “empreender” lançando mão dos escassos “capitais sociais e intelectuais” que o capitalismo ainda lhes faculta para sobreviver.

4.

Esse rápido retrospecto é suficiente para mostrar que o espaço do empreendedorismo é aquele habitado pelo que Marx denominou exército industrial de reserva, o colchão de amortecimento que garante a manutenção da exploração e acumulação capitalistas.

É ali, no mercado informal (ou, segundo alguns, infernal), cuja expectativa de lucro se é inferior aquela que interessa ao capital, que os filhos da classe trabalhadora – os empreendedores – competem exasperadamente, de modo fratricida e predatório, sem as parcas compensações decorrentes de sua condição de vendedores de força de trabalho para os detentores do capital.

Ao fazê-lo com uma intensidade ainda maior do que aquela que caracterizava a pequena e média empresa que até há algumas décadas funcionava para absorver o efeito deletério das suas crises cíclicas do sistema capitalista, eles são cada vez mais os responsáveis por manter o processo de extração do excedente econômico.

Considerações dessa natureza, baseadas nas contribuições de renomados pesquisadores sobre a relação funcional entre a consolidação do neoliberalismo e a expansão do empreendedorismo, não têm impedido que venha crescendo sua aceitação como um procedimento tático para a obtenção do resultado estratégico postulado pelo feminismo e analítica e conceitualmente codificado pela economia feminista.

Parece não se estar levando em conta que para reduzir a inadequação de um sistema a um dado objetivo não basta conceber ações visando à reversão das suas características que produzem esta inadequação. O dito “a história não anda para trás” é útil para ilustrar a noção de que o resultado de ações dessa natureza pode ser uma situação ainda pior do que aquela que, “olhando pelo retrovisor”, é julgada como conveniente.

Esse dito serve para reputar como pouco realista a tentativa de reverter o círculo vicioso da opressão da mulher mediante um processo de empoderamento financeiro baseado na competição entre “donas de negócios” num mercado idealizado tendo por base uma hipotética fase pré-neoliberal do capitalismo. E, assim, serve para colocar em xeque a ideia de que a consecução desse empoderamento pela via do empreendedorismo, mediante a competição entre suas proprietárias, possa alavancar a construção do cenário de sororidade idealizado pelo feminismo.

Emerge nesse contexto o argumento de que para andar para frente, para impulsionar a história na direção defendida pelo feminismo, é necessário muito mais do que o que propõe o empreendedorismo. De que se precisa de a algo que não se limite à mera recuperação de uma trajetória capitalista (ultra)passada e potencialmente disruptiva.

5.

Por essas razões, sustento que o empreendedorismo, ainda que entendido apenas como uma saída tática, defensiva, por estar carregado e ser “carregador” de valores muito distintos da proposta filosófica e moral da sororidade e contradizer os elementos analítico-conceituais desenvolvidos, defendidos e praticados pela economia feminista, não é adequado para encaminhar a busca de autonomia financeira da mulher.

Ao buscar conceber a ideia-força capaz de orientar a construção do cenário da sororidade, devemos lembrar duas coisas. A primeira, é o que nos mostra história acerca de como a adoção, no momento tático, de práticas pouco aderentes ao cenário estratégico desejado pode “contaminar” a trajetória futura com valores e interesses contrários àqueles que animam a construção do cenário estratégico desejado.

O que implica avaliar criticamente o jogo de interesses que levou ao processo mediante o qual, amparado em instrumentos metodológico-operacionais que, embora provenientes do âmbito privado, se propõem como universais e, portanto, extensivos a territórios animados com propósitos distintos daqueles do mundo dos negócios, o empreendedorismo adquiriu crescente relevância na esteira do neoliberalismo.

E, por oposição, examinar em detalhe a dificuldade de implantação de propostas alternativas contemporâneas a do empreendedorismo que nasceram “contaminadas” com valores distintos, como aquelas que na América Latina conhecemos como Economia Social ou Solidária. Propostas que, apesar de estarem ganhando crescente adesão na cena internacional e se afirmando como um caminho de enfrentamento radical (no sentido de ir até as raízes do problema) da policrise que enfrentamos, permanecem até mesmo por ação da nossa esquerda, mais do que desfinanciadas, invisibilizadas, no espaço da política pública.

Por propor a solidariedade (e não a competição), a autogestão (e não a heterogestão centralizada e autoritária) e a propriedade coletiva dos meios de produção (e não a privada ou estatal), essa ideia-força, por construção dotada valores em tudo coerentes como os do feminismo, parece muito mais proveitosa do que o empreendedorismo para orientar a construção do cenário estratégico da sororidade.

No momento tático, da ação de reduzir aquela desigualdade via o empoderamento da mulher, a proposta da economia solidária tenderá a promover, mediante sua participação no interior das redes solidárias de produção, consumo e finança, e da cooperação entre essas redes na linha da consigna de que “mulheres atuam em rede”, a implementar, desde o começo e ao longo da trajetória, estratégias coerentes com esse cenário.

Abarcando os dois momentos – tático e estratégico – essa proposta pode operar sobre os espaços da politics e da policy em que se desenrola a economia feminista subsidiando de modo mais seguro e eficaz do que o empreendedorismo o processo decisório que conduz à elaboração da política pública.

A segunda coisa se refere ao caso brasileiro. Ele talvez seja o exemplo mais flagrante da incapacidade do capitalismo periférico e das propostas que, como o empreendedorismo, buscam proporcionar uma sobrevida a um arranjo societário onde a taxa de lucro e a taxa de juros estão entre as mais altas do mundo. Onde a injustiça faz com que se destine à classe proprietária 8% do PIB como serviço da dívida pública, 5% como renúncia fiscal, 10% como sonegação e 15% como compra pública.

Onde, dos mais de 150 milhões em idade de trabalhar, o capital se dispõe a empregar com “carteira assinada” (isto é, proporcionando à classe trabalhadora o muito escasso benefício que decorre de um assalariamento limitado por um salário mínimo de menos de ¼ do previsto constitucionalmente) apenas 40 milhões. E onde cerca de 80 milhões nunca tiveram e provavelmente nunca terão emprego.

Essas duas coisas parecem suficientes para prosseguir com a conversa sobre as ideias-força que podem impulsionar a economia feminista, mas que, no curto espaço do 3º Seminário da Mulher Economista, não puderam ser examinadas. *Renato Dagnino é professor titular no Departamento de Política Científica e Tecnológica da Unicamp. Autor, entre outros livros, de A indústria de defesa no governo Lula (Expressão Popular) [https://amzn.to/4gmxKTr